Man’s Best Friend: Sabrina Carpenter e o pop como espelho distorcido do patriarcado
- Marcello Almeida
- 4 de set.
- 3 min de leitura
A capa não é só provocação: é denúncia

O pop sempre foi acusado de superficialidade. Mas o que Sabrina Carpenter faz em Man’s Best Friend é usar justamente esse espaço — saturado de imagens, padrões e mercadorias — como campo de batalha. Seu novo álbum é um manifesto mascarado de festa, um ensaio sobre dor e poder travestido em glitter, um riso carregado de pólvora.
Vivemos uma era em que o corpo feminino é mercadoria exibida em outdoors digitais, julgado em tempo real por milhões de olhares anônimos. A mulher é empurrada a encarnar um script que nunca escreveu: ser desejável sem ser vulgar, sensual sem ser excessiva, autêntica sem escapar da caixinha. O olhar masculino, reproduzido pela indústria midiática, ainda dita as curvas, os ângulos, os limites. E é contra esse olhar que Sabrina lança seu disco.
Man’s Best Friend é também um triunfo. Sabrina consegue fundir R&B, soul e pop em uma linguagem que é tanto sofisticada quanto acessível. Há batidas que remetem ao disco clássico, melodias suaves que flertam com o soul e arranjos contemporâneos que soam feitos para a pista, mas sem perder densidade emocional. O resultado é um álbum que se move entre camadas: dançante e íntimo, sedutor e crítico, sempre com a sensação de que cada detalhe da produção serve à narrativa maior do disco.
Logo na abertura, “Manchild” é um retrato cruel de uma masculinidade infantilizada. A batida parece alegre, mas cada verso desmonta o mito do macho alfa que se imagina dono do mundo — e não consegue lidar nem com o próprio espelho. “Tears” veste a vulnerabilidade com ritmo de pista, lembrando que até as lágrimas podem ser coreografadas quando o amor vira espetáculo.
Em “House Tour”, Sabrina guia o ouvinte pelos “cômodos” de seu corpo como quem apresenta uma galeria de arte. Não é entrega ao voyeurismo, é gesto de posse: ela mostra o que é seu para expor a obsessão de quem sempre quis colonizar esse território. Já em “My Man on Willpower”, desmonta a promessa frágil das relações que sobrevivem apenas no discurso, rindo da ingenuidade romântica que tantas vezes serve para manter mulheres presas a expectativas.
E há ainda “Sugar Talking”, ironizando a fala doce que mascara manipulação; “Nobody’s Son”, recusa radical a carregar o fardo do que esperam dela; “Go Go Juice”, um soco de energia contra a paralisia que o patriarcado tenta impor. Cada faixa é um tapa — ora dado com batom vermelho, ora com risada debochada — no script que sempre moldou a figura feminina para consumo masculino.
A capa polêmica é só a síntese visual desse projeto. Sabrina de quatro, sendo conduzida, encena a caricatura da submissão feminina para devolver ao mundo o constrangimento de enxergar o ridículo do patriarcado. Não é fetiche: é sátira. É um espelho distorcido que mostra o quão grotesco é esse olhar masculino que insiste em ver o corpo da mulher como objeto de posse.
Sabrina não suaviza sua crítica. Ela joga com o erotismo — mas o erotismo aqui não é mercadoria, é arma. É poder que se exibe consciente, zombando da obsessão histórica da indústria em padronizar mulheres. Ao se apropriar da própria imagem e rir dela, Sabrina dá um passo adiante: transforma em performance crítica aquilo que sempre foi usado para silenciá-la.
O resultado é um disco que fala do presente. Um presente em que corpos continuam sendo policiados, onde a misoginia reaparece travestida de moralidade digital, onde likes e cancelamentos ainda medem o valor de uma mulher. Mas Man’s Best Friend responde sem pedir licença: rindo, dançando, provocando, expondo.
No fim, Sabrina Carpenter mostra que o pop pode ser mais que entretenimento: pode ser uma arma carregada de ironia, um manifesto contra o olhar que tenta prender o corpo feminino em vitrines. E aqui, rir não é submissão — é a forma mais afiada de resistência.

⭐⭐⭐⭐
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