Lodger: o turista perdido, a queda do alienígena e a graça de se tornar humano
- Marcello Almeida
- 25 de jun.
- 3 min de leitura
Depois de atravessar o silêncio e o heroísmo, Bowie desce à Terra. E, espantado, percebe que ainda há poeira, tacos, vaidade, ironia — e muito barulho

Lodger não chega com reverência. Não te convida para uma experiência transcendental nem promete revelar os segredos do universo. Não tem alter egos, não tem ficção científica, não tem máscaras douradas de teatro kabuki. Ao contrário: é como se Bowie estivesse dizendo “chega disso tudo por enquanto, quero só viver um pouco com os pés no chão.”
Lançado em 1979, o terceiro e último capítulo da trilogia de Berlim é também o mais humano. O mais estranho por parecer… comum. É um disco de deslocamento — emocional, geográfico, criativo. Bowie já não precisa ser o arauto do futuro. Já não quer ser herói, nem mártir, nem androide sussurrando entre sintetizadores. Ele quer experimentar o tédio, o sarcasmo, a vida comum. Quer rir de si mesmo, zombar do próprio passado e dançar ao som de uma batida dissonante, enquanto observa o mundo pelo retrovisor.
Lodger soa como se David Bowie tivesse deixado o templo, pegado uma mochila e caído no mundo — não como lenda, mas como hóspede. Alguém em trânsito. Alguém fora de casa e fora de si.
Musicalmente, é um caos ordenado. É punk, é art rock, é afrobeat de boutique, é ska meio torto, é world music filtrada por um inglês ex-viciado que voltou da beira do abismo com um olhar mais cínico e menos desesperado. Aqui tem de tudo — e quase nada soa confortável.
“Fantastic Voyage” abre como uma reflexão política disfarçada de balada introspectiva. “African Night Flight” mergulha num fluxo de consciência insano, com vozes atropeladas e sons ásperos, inspirada numa viagem real ao Quênia que mais parece uma bad trip colonial. “Yassassin” mistura reggae com referências turcas e uma melodia que parece flutuar em um tapete desconcertado. Bowie brinca com culturas, sotaques e identidades — não como um ladrão, mas como um turista perdido num bazar, tateando por significado.
“D.J.” é Bowie se olhando no espelho e fazendo careta. Uma crítica divertida, dançante e amarga ao culto da imagem. “Boys Keep Swinging” é a caricatura da masculinidade performática, com vocais meio bêbados e uma estrutura que parece parodiar a própria ideia de hino glam. “Red Sails” é Eno em transe, e Bowie surfando na onda com uma elegância desajustada. “Look Back in Anger” soa como um confronto entre anjos e guitarras sujas, com o vocal vindo de algum ponto entre o peito e a ressaca.
É o disco onde Bowie larga o pedestal e se permite ser só… gente. Um cara de 32 anos, rico, exausto, tentando equilibrar fama, vício, divórcio e reinvenção artística, enquanto o mundo se move rápido demais. Não é o Bowie de “Starman”. É o Bowie que acorda, toma um café ruim e tenta lembrar onde está.
O título já diz tudo: Lodger. Hóspede. Passageiro. Um cara que passa, observa, ouve, fala com vendedores, tropeça em conceitos e tira sarro da própria genialidade. Não é mais o alienígena glamoroso — é o britânico deslocado, o ex-mártir do art rock que agora escolhe rir em vez de chorar.
E talvez essa seja a maior beleza de Lodger: ele não quer impressionar. Ele quer existir. Depois de redefinir a música pop com Low e Heroes, Bowie agora aceita o caos, o ruído, a mediocridade do cotidiano. E ao fazer isso, nos oferece algo raro: acesso à sua humanidade.
Porque antes de virar um semideus da cultura, Bowie foi um artista errante. Um cara em busca. E Lodger é o retrato mais claro desse homem cansado e curioso, pronto para deixar que a cultura o guie, em vez de tentar controlá-la.
Não é o disco que grita “salve o mundo”. É o disco que sussurra: “eu também tô tentando entender tudo isso, do meu jeito meio torto.”

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