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Loop temporal é tema constante no cinema. Com essa temática, foram muitas as produções que fizeram sucesso, pegue como exemplo: ‘Feitiço do Tempo’ (1993), ‘Corra Lola, Corra’ (1999), ‘Donnie Darko’ (2001) e ‘Efeito Borboleta’ (2004). A série ‘'Russian Doll’ possui essa temática, porém foge do clima de suspense/ação que muitas produções desse tipo costumam ter para ganhar uma dinâmica típica de comédia dramática, embora seja focada na natureza humana e siga por muitas reflexões.
Uma das criadoras da produção, Natasha Lyonne, trabalhou no elenco da série de sucesso, ‘Orange Is The New Black’, o que pode ter servido como uma boa experiência para a atriz em sua criação. Em ‘Russian Doll’, ela é Nadia, ganha uma peruca ruiva e um outro semblante (revelando um lado bem camaleônico dessa atriz).
Após sair de uma festa agitada de aniversário num apartamento no centro de Nova Iorque, Nadia acaba morrendo. O problema é que ela aparece subitamente no mesmo lugar onde tudo começou, no banheiro do apartamento. A partir daí, mortalidade não existe mais para ela e como toda produção com loop temporal, a personagem vai tentando se moldar ao novo contexto de vida e busca compreender o que de fato está acontecendo.
Nadia é a personagem que dá impulso à série. Seus trejeitos, caras, bocas, respostas ao pé da letra, ironias, soluções rápidas e determinação convencem logo no primeiro episódio.
Conforme morre e repete esse ciclo, a personagem vai se adaptando a sua nova ‘fase’ e, inclusive, uma das cenas mais fantásticas é quando ela se entope de cigarros, drogas e bebidas na festa por conta de que a morte nunca lhe poderia afetar. Por outro lado, como um deboche, às vezes prefere não morrer de forma óbvia pelo obstáculo que já a matou diversas vezes, seguindo um atalho mais apropriado para evitar isso.
Nadia começa a percorrer/refazer seus passos da noite de sua primeira morte, e é dessa forma que outros personagens dão as caras: o mendigo que precisava apenas de um pouco de atenção, o professor de literatura orgulhoso, machistas de plantão, ex-namorado, dono de mercearia e uma psicóloga um tanto quanto maluca (só para citar alguns). Cada um com sua importância na série e trazendo muito mais substância ao enredo e aos diálogos (até personagens que aparecem em apenas três minutos, como a vendedora da joalheria acabam rendendo cenas memoráveis).
A trama ganha ainda mais perspectiva quando Nadia descobre que não é apenas ela que está passando por esse mistério. A procura então passa a ser outra, conhecer essa outra pessoa, sua vida e seus medos para então o desvendamento ser mais lúcido (mas ele não será e nem chegará fácil). Dessa forma, ela tenta se ajustar, busca entender melhor os fatos, seu passado, as pessoas que a cercam, sua própria psicologia. Quando então o cenário a sua volta passa a mudar a cada ciclo recomeçado, Nadia percebe que a solução precisa ser rápida e a carga dramática aumenta, sem soar piegas e redundante. O cenário noturno de Nova Iorque, com sua iluminação e os reflexos nas ruas, realçam a trajetória de Nadia.
Nenhum dos temas focalizados esgotam o espectador ou o soterram com muitas informações de uma só vez. Ao contrário, inseridos dentro da ficcionalidade do loop temporal, esse temas, tão comuns na rotina da vida, deixam o espectador numa posição confortável, fazendo uma aproximação coesa e funcional.
O rompimento de uma relação amorosa, sexualidade, a fragilidade da vida, depressão, amizade, espiritualidade, o trabalho rotineiro, as pessoas que cruzam nossos caminhos, a noite solitária dentro de um apartamento. Quem não passou por isso?
Cheio de referências, o roteiro inteligente e ágil ganha força ao se valer bastante tanto da Literatura quanto do Cinema. Existem inúmeras referências que acrescentam os diálogos, e, por consequência, enriquecem o roteiro. Da literatura de William Faulkner até a citação do filme “Vidas em Jogo” (1999), com Michael Douglas, o espectador encontrará muitas citações de outras produções.
Outro destaque fica por conta da trilha sonora. Discreta em alguns episódios, mas aparecendo em cenas importantes, ela é composta de nomes desconhecidos e de outros consagrados. Abrangendo vários gêneros, de Eletrônica ao Rock, muita banda 80’s/90’s dão as caras (When In Rome, B-52’s e Slowdive). Escolha certeira e diversificada.
‘Russian Doll’ não é uma série perfeita, tem episódios que até deixam a desejar como um todo, entretanto é bem inspirada e tem poder criativo ao tratar um tema do cinema e ir além dele, extrapolar, expondo a personalidade humana e fazendo uma espécie de viagem onde não somente a personagem faz uma reflexão de sua vida, como o espectador, mero cúmplice, passa também a fazer.
Ficha Técnica:
RUSSIAN DOLL (2019)
Em andamento (2019-)
Ano: 2019
Gênero: Comédia, drama, loops temporais
Temporada: 1 (segunda temporada em 20 de abril de 2022)
Criado por: Leslye Headland, Natasha Lyonne, Amy Poehler
Elenco: Natasha Lyonne, Greta Lee, Yul Vazquez, Elizabeth Ashley, Charlie Barnett
Classificação: 16 anos
Onde ver: Netflix
NOTA DO CRÍTICO: 8,0
Assista ao trailer da série:
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