top of page

Como Manchester virou o berço das revoluções sonoras que mudaram o mundo

Poucas cidades criaram tanta desobediência sonora quanto Manchester

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

Manchester sempre foi mais do que um ponto no mapa da Inglaterra. É uma cidade construída sobre fábricas, chuva, suor e a teimosia dos trabalhadores que sustentaram o país durante as décadas mais duras do século XX. Foi ali que a classe operária aprendeu a existir entre ruínas industriais e sonhos persistentes, numa paisagem que parecia sempre cinza, mas que guardava um fogo silencioso por baixo. Um fogo que, cedo ou tarde, explodiu em música.



Antes das grandes revoluções sonoras, a cidade já dava sinais de que havia algo diferente borbulhando ali. Os Buzzcocks inauguraram uma urgência punk que parecia incompatível com o cinza industrial, mas que nascia justamente dele. Antes deles, Herman’s Hermits e The Hollies já haviam levado Manchester para o rádio britânico, provando que mesmo uma cidade endurecida podia produzir melodias capazes de viajar o mundo. Eram faíscas iniciais, prenúncios de um incêndio cultural que ainda estava por vir.


Muito antes do Oasis colocar Manchester no centro do imaginário pop dos anos 90, a cidade já havia tremido. Nos anos 70 e 80, Joy Division, New Order e The Smiths foram mais do que bandas, foram formações tectônicas. Cada uma delas deu um pedaço do corpo cultural moderno: a melancolia profunda, a eletrônica que reinventou o futuro, a poesia que transformava dor em linguagem. Foi ali, nas noites de clubes apertados, que uma outra Inglaterra começou a nascer. Uma Inglaterra menos aristocrática, menos polida, mais verdadeira.


E quando o movimento conhecido como Madchester tomou força, no fim dos anos 80, a transformação ficou impossível de ignorar. Inspirado pela House de Chicago, pelo rock alternativo americano, pelos ecos da Factory Records de Tony Wilson, o cenário virou uma mistura improvável de dance music, guitarras e hedonismo. O Haçienda, aquela catedral rave montada no meio de uma cidade industrial, virou um símbolo global. Era Manchester dizendo ao mundo: “nós também podemos reinventar tudo”.


Os Stone Roses e os Happy Mondays foram a fagulha inicial dessa combustão criativa que transformou Manchester em território mítico. Os Roses, com sua mistura de psicodelia, atitude e uma elegância quase espiritual, deram ao rock britânico uma sensação de transcendência em plena era de concreto e desemprego. Eram o sonho pintado em mural, a prova de que uma banda da periferia podia soar tão eterna quanto qualquer gigante.


Foto: Pictorial Press Ltd / Alamy Stock Photo
Foto: Pictorial Press Ltd / Alamy Stock Photo

Já os Mondays representavam o oposto complementar: caos, hedonismo, suor, noite infinita, uma Manchester que se recusava a dormir porque sabia que, ao amanhecer, a realidade voltaria dura. Eles eram o barulho bonito da contracultura, a batida torta das fábricas virando pista de dança. Juntos, Roses e Mondays não só abriram o caminho, eles criaram a estrada, o imaginário, a fronteira simbólica onde o Oasis aprenderia a caminhar com a cabeça erguida.


E aí você entende: quando o Oasis surge, ele não surge do nada. Surge de uma cidade que já havia sido partida, remendada, sacudida e reinventada. Surge de ondas anteriores que prepararam o terreno. Mas também surge com um grito próprio, um grito que não tenta ser sofisticado, nem experimental, nem intelectual. Surge com a força da rua, do pub, do operário, do garoto teimoso que se recusa a aceitar o destino que deram pra ele.


E aí entra uma figura que muitos esquecem, mas que mudou tudo: Alan McGee. Escocês, dono da pequena Creation Records, um cara com olhar afiado e um faro absurdo para talento, e, paradoxalmente, alguém que não era de Manchester, mas enxergou na cidade algo que Londres não enxergava. Foi McGee que acreditou no Oasis antes de qualquer grande gravadora. Foi ele que entendeu que aquele caos organizado, aquela arrogância magnética, aquela ambição quase ingênua eram energia pura. Foi ele que fez o telefone tocar. Foi ele que transformou uma banda de bairro num fenômeno global.



Quando penso em tudo isso, não consigo evitar de pensar também em mim. Em como essa música, e essa cidade que eu nem conheço pessoalmente, diz tanto sobre quem eu fui e sobre quem eu tento ser. Talvez porque Manchester sempre tenha sido a capital dos que não aceitam o lugar que lhes deram. E eu, como muita gente aqui, cresci assim: tentando caber num mundo que não deixava muito espaço, procurando brechas, inventando caminhos, segurando firme nos poucos faróis emocionais que apareciam. E, de alguma forma, a música de Manchester sempre foi um desses faróis.



Porque ali não existe glamour. Existe verdade. Existe gente comum transformando dor em arte, rotina em poesia, fracasso em estilo. E acho que isso fala com a gente de um jeito que Londres nunca falou. Porque nós, brasileiros, entendemos o que é ser subestimado. Entendemos o que é trabalhar o triplo para aparecer metade. Entendemos o que é sonhar grande num lugar que te empurra pra baixo. Talvez seja por isso que Manchester nos soa familiar mesmo do outro lado do oceano. Ela é, de certa forma, parente nossa.


E quando o Oasis finalmente explode nos anos 90, não é só uma banda que surge, é o coro acumulado de décadas de luta de classe, de reinvenção cultural, de resistência emocional. É a cidade dizendo: “agora é com a gente”. É a prova viva de que a arte pode nascer de qualquer chão, inclusive do mais improvável.


No fundo, Manchester é isso:um lembrete de que cultura não nasce no conforto.Nasce na luta.Nasce na falta. Nasce no peito de quem não tem nada além de coragem e um pouco de música pra se agarrar.



E é por isso que, tantos anos depois, essa cidade ainda reverbera dentro de mim e de tanta gente. Porque Manchester não nos deu só bandas. Nos deu uma forma de existir. Nos ensinou que a grandeza pode crescer no cimento. Que a poesia pode brotar no barulho das fábricas. Que a arte é, muitas vezes, a única maneira que a classe trabalhadora encontrou de continuar viva.


Você pode ouvir a playlist sobre a matéria logo abaixo:



bottom of page