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Blackstar: a estrela que brilhou no escuro para dizer adeus

Essa imortalidade dolorosa não é uma farsa: Bowie viverá muito depois que o homem morrer

David Bowie no clipe de 'Blackstar'
David Bowie no clipe de 'Blackstar' (Foto: Divulgação)

David Bowie morreu em 10 de janeiro de 2016. Dois dias antes, lançou um disco. Mas esse disco não é só um disco. É uma carta, uma crônica, um feitiço. Uma elegia composta por um homem que já não pertencia mais a este mundo — mas que, antes de partir, fez questão de deixar sua última obra-prima cravada nas estrelas.



A gente não ouve Blackstar. A gente se curva diante dele. A alma murcha um pouco. A garganta fecha. O coração fica estranho, apertado e grato ao mesmo tempo. Porque Blackstar é mais que um álbum: é um testamento poético de quem sabia que estava morrendo — e teve a coragem absurda de transformar a própria morte em arte. De lançar um disco onde o suspiro final já vinha embalado em saxofones tortos, letras enigmáticas, jazz atmosférico e metáforas que ardem por dentro.


É como se Bowie tivesse vestido sua roupa mais sombria, acendido a luz negra do quarto, olhado pra gente de dentro da própria ausência — e dito: “Olha, não vai ser fácil. Mas eu estou indo.”


Ele pode ser considerado o último Lázaro da música: assim como foi aquela figura bíblica convidada por Jesus a emergir de sua tumba após quatro dias, Bowie colocou muitos de seus eus para descansar ao longo do último meio século, apenas para ressurgir com um diferente disfarce, um novo símbolo, ou um novo artista para contar todas as suas experiências e visões de mundo.



Não é coincidência que a primeira faixa se chame "Blackstar". Uma estrela escura. Um corpo celeste que já não emite luz visível, mas ainda possui massa, gravidade, presença. Bowie se transforma nesse conceito. Deixa de ser Ziggy, de ser Duke, de ser homem. Vira constelação invertida. Símbolo. Um eco eterno em nossa vida.


“I’m not a pornstar. I’m not a wandering star... I’m a Blackstar.”


Ele já havia abandonado o culto. Agora, abandonava o corpo.


A música transita entre movimentos, muda de forma, rasga o chão e sobe para o espaço. É inquieta, mutante, como se fosse feita por várias vidas de Bowie ao mesmo tempo. É um réquiem eletrônico. Um teatro ritualístico. Uma mensagem cifrada para os vivos. Quando ele diz “Something happened on the day he died”, a gente sente. A gente sabe.


Depois vem "Lazarus", e o mundo parou.


“Olhe aqui pra cima / Estou no céu / Tenho cicatrizes que não podem ser vistas…”


Nunca foi só letra. Nunca foi só melodia. Era o próprio Bowie avisando que estava partindo — mas do jeito dele. Poético, teatral, melancólico, imortal.


David Bowie no clipe de “Blackstar” (Foto: Divulgação/)
David Bowie no clipe de “Blackstar” (Foto: Divulgação/)

E ainda teve espaço para mais provocações. "Tis A Pity She Was A Whore” é Bowie cuspindo caos, como se quisesse lembrar que ainda havia sangue correndo nas veias. “Sue (Or in a Season of Crime)” parece uma perseguição noturna dentro da própria cabeça. “Girl Loves Me” é quase uma língua alienígena, escrita por um homem que já fala desde o além.


Mas é no fim que ele enterra o coração.


“Dollar Days” é doída. Linda. Uma súplica em forma de canção. Bowie canta com a fragilidade de quem já aceita, mas ainda resiste. A melodia é azul, úmida, triste, e cheia de vida. Uma despedida com olhos marejados. E então, vem ela — a última música. “I Can’t Give Everything Away." Bowie não abre tudo. Mas o que entrega já é mais do que qualquer um poderia dar. O sax chora. A voz falha. A letra se enrola em si mesma e some. Não há clímax. Há silêncio.


“Seeing more and feeling less / Saying no but meaning yes.”


É a última frase. É o último olhar. Bowie não desaparece com um estrondo — mas com um sussurro.



Blackstar é um milagre. É o tipo de obra que não se repete. Não se recria. Não se traduz. É Bowie completando o ciclo. O homem que caiu na Terra agora sobe de volta — em espiral, em névoa, em nota musical. É o reencontro com O Homem Que Caiu Na Terra, sim. Mas é também o adeus do artista ao seu corpo, aos seus fãs, ao próprio tempo.


Ele sabia. E mesmo assim — ou talvez por isso — nos deu um presente final.


Com Blackstar, David Bowie não morre. Ele transcende.


⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️

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