"Malandro é malandro e mané é mané”

Poucos artistas captaram a alma do povo com tanta sagacidade e ironia quanto Bezerra da Silva. Sua música não era apenas samba; era um registro social, uma crônica afiada da malandragem, da sobrevivência e das contradições do Brasil. Ao longo de mais de três décadas de carreira, ele transformou o samba de partido-alto em uma arma de denúncia, esculpindo versos que expunham o cotidiano das favelas com um olhar direto, debochado e profundamente verdadeiro.
Nascido José Bezerra da Silva, em 1927, em Recife, Bezerra cresceu ouvindo maracatus e cocos antes de migrar para o Rio de Janeiro, onde se tornou percussionista e, depois, cantor. Seu primeiro contato com a música profissional foi no samba tradicional e na seresta, mas foi nos morros cariocas que ele encontrou sua verdadeira voz: uma voz moldada pela rua, pela gíria afiada, pelo olhar atento às injustiças e aos personagens esquecidos da cidade.
"Malandro é malandro e mané é mané”
Seus sambas eram retratos falados, carregados de humor ácido e denúncia social. Bezerra não escrevia sobre amores idealizados ou paisagens bucólicas. Seus personagens eram bicheiros, pedreiros, ambulantes, “cidadãos comuns” que enfrentavam a dureza da vida com astúcia e jogo de cintura. Era o cronista do submundo, dando voz àqueles que raramente tinham espaço na grande mídia.
Músicas como “Malandro é Malandro e Mané é Mané”, “Sequestraram Minha Sogra”, “Pai Véio 171” e “Candidato Caô Caô” não eram apenas engraçadas — eram reflexos cortantes de uma sociedade marcada pela desigualdade e pela esperteza como forma de sobrevivência. O “malandro” de Bezerra não era o estereótipo glamouroso da boemia, mas sim aquele que conhecia as regras do jogo e sabia driblar um sistema que sempre o excluía.
A parceria com os compositores da favela

Um dos aspectos mais autênticos da obra de Bezerra era sua relação com os compositores das comunidades. Muitos de seus sucessos vinham diretamente da vivência de sambistas anônimos, homens e mulheres que transformavam suas experiências em versos afiados. Bezerra foi um dos primeiros a reconhecer e valorizar esse talento subterrâneo, levando para o grande público histórias que, de outra forma, jamais seriam ouvidas.
Essa conexão genuína com as favelas fez dele uma espécie de porta-voz não oficial dos excluídos. Diferente de outros sambistas que romantizavam a malandragem, Bezerra falava da realidade nua e crua. Ele expunha a hipocrisia do discurso oficial e mostrava como a sociedade marginalizava os mesmos que depois tentava imitar.
A desconfiança do sistema e a devoção popular
Bezerra nunca fez questão de agradar a elite cultural ou os críticos mais ortodoxos. Sua música incomodava justamente porque jogava luz sobre verdades que muitos preferiam ignorar. Nos anos 80 e 90, enquanto o Brasil passava por transições políticas e sociais turbulentas, Bezerra continuava apontando o dedo para os poderosos e desmascarando falsos moralismos.
O resultado? Um culto popular inabalável. Bezerra da Silva não precisava de rádios ou de grandes gravadoras para ser ouvido. Seu público era fiel porque se via refletido em suas músicas, porque encontrava ali um retrato sem retoques de suas dores, suas esperanças e seu senso de humor afiado.
O legado do “Partideiro do Gueto”
Bezerra partiu em 2005, mas sua obra segue viva. Seu samba continua ecoando nas rodas, nos botecos e nas playlists daqueles que reconhecem nele um cronista atemporal. Se hoje o rap, o funk e outros gêneros urbanos ocupam esse espaço de denúncia e reflexão social, é impossível não reconhecer que Bezerra abriu esse caminho, ensinando que a música popular pode — e deve — ser uma ferramenta de contestação.
Mais do que um sambista, Bezerra da Silva foi um narrador de seu tempo. Alguém que pegou um violão e disse verdades que muita gente não queria ouvir. E, no Brasil de hoje, essas verdades continuam mais atuais do que nunca.
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