Um disco que ressoa através do tempo, permanece atual e é intemporal
Em 14 de outubro de 1983, o mundo finalmente pôde ouvir a estreia vibrante e enérgica de Cyndi Lauper com o intenso 'She’s So Unusual'. Esse disco reúne as melhores nuances do pop e os agitos da New Wave. Acima de tudo, é um álbum feminista cujas canções ressoaram nos corações de toda uma geração e abriram portas para o grande glamour da era MTV.
Em 83, eu ainda nem sabia a cor do mundo, mas desde que comecei a me entender por gente, canções como "Girls Just Want to Have Fun" e "Time After Time" já ressoavam pelos alto-falantes do mundo afora. Na tela da MTV, Lauper já incendiava o cenário musical. Em 1984, ela participou do The Tonight Show com uma performance explosiva. Sua energia no palco era surreal, e parecia que ela nunca largaria aquele lugar por completo. Toda sua presença e interação no palco deixavam claro que ela havia nascido para cantar e atuar com expressões e força além do seu tempo.
Essas características ressoam plenamente em 'She’s So Unusual', um disco vertiginoso, imbuído de uma força cósmica, confiança, sentimentalismo e um humor sarcástico e inteligente. Trata-se de um trabalho minimalista e multifacetado de uma estrela igualmente multifacetada, que surgiu para mostrar ao mundo sua singularidade e combater o machismo e os abusos contra as mulheres. Neste álbum, Cyndi deixa transparecer todas as suas batalhas, desde a infância em um lar abusivo até o preconceito de um mercado dominado por homens. Sua voz emerge como um ato revolucionário e de resistência feminina.
Toda a força e expressividade dessa obra começa com uma faixa que, para muitos, é um cover: "Girls Just Want to Have Fun", de Robert Hazard. A canção original aborda uma situação relacionada à mulher com uma letra considerada machista, contrária a todos os princípios que Lauper sempre defendeu. Ela mesma considerou a canção insípida e misógina. Reescreveu a faixa, transformando sua letra e sonoridade em um verdadeiro hino e manifesto feminista de todos os tempos, como se fosse um alto e potente grito de guerra.
Com isso, ela queria dar voz a vidas reprimidas e sofridas, como as de sua mãe e avó, que foram impedidas de manter qualquer aparência de vida social fora de casa. Com um toque de mágica e classe, Cyndi trocou versos como "Todas as minhas garotas têm que andar ao sol" para "Eu quero ser aquela que anda ao sol". Para toda uma geração de meninas da época, que já haviam sido doutrinadas pelo machismo, a voz de Cyndi disse a todas elas que poderiam ser quem quisessem ser. Um disco que ressoa pelas lacunas do tempo e se mantem atual e poderoso.
Lauper sempre quis fundir o synth-pop, reggae e ska, criando uma sonoridade que lembrasse tanto The Clash quanto Grace Jones, com a magia nostálgica das músicas de Prince. Não é à toa que 'She’s So Unusual' abre com a impactante e estrondosa "Money Changes Everything", amplamente inspirada pelo icônico 'London Calling' do Clash. Antes da euforia e do tom festivo de "Girls...", a faixa de abertura nos apresenta todo o poder vocal e sonoro de Lauper, com sua voz rouca e peculiaridades do Queens, misturadas com influências de Stevie Nicks, mas sem deixar de ser a icônica Cyndi Lauper, cuja voz é inconfundível em qualquer lugar do mundo.
Já "When You Were Mine", de Prince, ganha novas notas de sintetizadores, dando um ar novo à canção, que adquire um charme singular na voz de Lauper. Em entrevista ao Spotify, a artista afirmou: “Eu não conhecia Prince naquela época, ele era apenas um cara magro de tanga e jaqueta que abriu para os Rolling Stones e agitou as coisas”. Mas ela simplesmente se apaixonou pela forma como Prince narrava a história de um relacionamento onde ainda existiam gotas de sentimentos espalhadas pelo ar.
"Time After Time", com sua paisagem romântica e nostálgica, é carregada por um ritmo envolvente de valsa, combinado com a voz agridoce de Cyndi. Tornou-se a canção ideal para bailes de formatura. A faixa aborda as dificuldades que o produtor Rick Chertoff e Lauper estavam enfrentando em seus próprios relacionamentos. O nome da canção veio de um guia de TV que listava o filme de 1979, Time After Time. A música quase se tornou o single principal do disco, por vontade da Epic, mas Lauper nunca quis ser rotulada como uma cantora de baladas e escolheu certeiramente “Girls Just Want To Have Fun”.
A canção também ganhou uma nova roupagem na voz de Miles Davis, que passou a incluí-la em seus sets, atribuindo uma nova perspectiva sobre esses sentimentos de traição, esperança e aceitação. 'She’s So Unusual' marcou uma nova era no cenário da música. O disco foi lançado no mesmo ano em que a MTV foi ao ar, tendo uma relação simbiótica com o canal televisivo. O clipe de "Girls Just Want to Have Fun" desempenhou um papel crucial para esse novo cenário. Hoje pode até parecer banal, mas nos anos 80, uma cantora aparecer em um clipe cantando na rua com cabelos volumosos e roupas inimagináveis, acompanhada de um grupo de dançarinos, trouxe um ar de inovação para a época.
O que não falta no disco é aquela sacada humorística para abordar temas considerados tabus, como a masturbação feminina, e isso fica evidente na ótima “She Bop” e seu som rockabilly inspirado nos anos 50. "All Through the Night" marca outro momento cintilante e romântico do trabalho. Cyndi nunca permitiu que nada e ninguém atrapalhasse sua jornada e carreira na música, muito menos interferirem em seu processo criativo, ela enfrentou abusos de críticos, membros da banda e até mesmo homens que controlam o mercado musical.
'She's So Unusual' foi um sucesso duradouro nos dois anos seguintes, com Lauper realizando uma extensa turnê pelos EUA, conhecida como Fun Tour. O álbum também emplacou uma série de singles de sucesso, incluindo "Time After Time" (seu primeiro número 1 nos EUA), "She Bop", "All Through The Night" e "Money Changes Everything".
Sucesso que ajudou o disco a alcançar vendas de aproximadamente 22 milhões de cópias mundialmente, além de render a Cyndi diversos prêmios, incluindo Grammys, MTV Awards e American Music Awards. Após participar da cerimônia deste último em 1985, ela se juntou a grandes nomes da música para gravar "We Are The World" do USA For Africa, onde sua voz se destacou como uma das mais proeminentes.
Lauper conseguiu canalizar a força dos oprimidos, uma maioria silenciosa que ela sabia estar ávida por uma voz. Como ela disse à revista Creem em 1984: “Somos muitos, não somos?”
She’s So Unusual'
Cyndi Lauper
Ano: 1983
Gênero: Synth-Pop, New Wave
Ouça: "Girls Just Want to Have fun, "Money Changes Everything
Pra quem curte: Madonna, Tina Turner
Humor: Energético, Excêntrico, Confiante
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