Especial Legião Urbana, 'Dois' 1986: "Somos tão jovens"
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Especial Legião Urbana, 'Dois' 1986: "Somos tão jovens"

Atualizado: 23 de jul. de 2023

Um disco feito pelas coisas do coração.



O segundo disco pode ser um pesadelo na trajetória de uma banda, ou não. A tão temida síndrome do segundo álbum se torna uma pedra no sapato de muitos artistas. Afinal de contas, esse é um momento decisivo na carreira de um grupo de rock que vem embalado após um sucesso tremendo do álbum de estreia. Você simplesmente abandona o anonimato para o mainstream. Um mundo novo de descobertas, incertezas e pressão de fazer um trabalho tão bom quanto o primeiro foi. É como se o segundo disco determinasse o caminho a seguir, entre ir ou ficar na sombra de um disco só.


O grupo brasiliense Legião Urbana vivia esse dilema, após o enorme sucesso do álbum de estreia que vendeu mais de 100 mil cópias na época, Renato e cia traçavam os caminhos para o tão aguardado segundo disco. '85' assim como gosto de chamá-lo, serviu como uma base, o alicerce perfeito para a banda encontrar sua identidade e escalar sua subida sonora. O grupo de Brasília também passava por um momento de transição, a saída da adolescência para a juventude. Isso contribuiu muito para atmosfera do segundo álbum da banda, que mergulhou em uma sonoridade límpida, instrumentos bem trabalhados e uma melodia celestial, cativante e romântica. 'Dois' foi literalmente feito pelas "coisas feitas pelo coração".


Um disco aclamado e conceituado pelos críticos e fãs, ampliou ainda mais a visibilidade da banda e vendeu horrores de cópias. Já não tinha como esconder, a Legião Urbana havia se tornado uma banda de legiões de fãs, carregados por sucessos eminentes como: "Eduardo e Monica", "Quase sem Querer" e "Índios", um reinado de luzes e sombras para o grupo liderado por Renato Russo.

Legião Urbana no programa Mixto Quente em 1986


O álbum chegou ao mundo em julho de 1986, de certo modo coincide com a transição do fim da Ditadura Militar para um regime democrático que acendeu nos corações dos brasileiros uma esperança e otimismo enganoso. Em fevereiro de 1986, o atual presidente José Sarney implantou o Plano Cruzado, que trocou o velho cruzeiro pelo cruzado e congelou os preços de todas as mercadorias, conseguindo, ainda que momentaneamente, conter a inflação que estava subindo nas alturas, mas os "planos brilhantes" de conter a inflação falharam seguidamente. Além disso, os chamados "fiscais de Sarney", que tinham a missão de controlar os preços em lojas e supermercados, se espalharam por todo o país. 'Dois' literalmente chegou nesse período de euforia, onde a economia brasileira estava à beira de um imenso colapso.


Entre a euforia e a ilusão de tempos melhores, a Legião dava seus passos direto para maturidade. A banda traçou os elementos que marcariam sua sonoridade pelo resto de sua breve existência. Abandonaram a agressividade e a ironia niilista de bandas punks e pós-punk como Sex Pistols e Joy Division, e passaram a diluir em suas composições uma atmosfera mais melancólica e romântica, com um certo ar de pessimismo que era a marca registrada de bandas norte-americanas e inglesas. Uma das maiores influências de Renato Russo, com certeza, foi a banda inglesa The Smiths, principalmente seu vocalista Morrissey, com seu estilo comportamental único no palco, seu visual deslumbrante e suas letras poéticas que Renato acabou adotando para si.




São minuciosos detalhes que somados as letras de Renato, que passaram a ser mais abertas e menos especificas, abordando temas sobre o universo das experiências humanas. Todo mundo possui seus demônios internos, suas dúvidas, medos, anseios...todos temos nossos conflitos e confusões, sejam profissionais ou sexuais. É como se álbum falasse de forma clara sobre isso tudo em suas doze canções que mudaram a vida de toda uma geração que se sentia sozinha e perdida em um país diante do caos.


A originalidade da voz de Renato, também alcançou novos timbres, e sua facilidade de compor letras em minutos o tornou em um compositor compulsivo. Sua dança cênica no palco meio que falava por si só sobre sua "sexualidade reprimida". Um estilo que muitos copiaram na época, mas só quem o viu ao vivo vai entender a grandeza de seus movimentos, de seus gestos e a voz de um autêntico poeta.


A ideia inicial que a banda tinha para o álbum era algo totalmente diferente do que foi lançado originalmente. Renato e cia queriam fazer um disco duplo com 25 canções tendo a base acústica. Mas devido a alguns problemas de produção criativa a ideia foi deixada de lado. 'Dois' foi gravado no Rio de Janeiro. Entre ensaios, estúdios e composições, o processo se estendeu por mais de um ano. Em 1986, ainda foram realizadas as primeiras eleições diretas para governador em duas décadas. A oposição venceu praticamente em 24 estados, com o partido do PMDB conquistando a maioria deles. O Brasil parecia se estabilizar entre a esperança e a decepção.



Portanto, o rock brasileiro caminhava para sua ascensão, bandas como Paralamas do Sucesso, RPM, Ultraje a Rigor, Kid Abelha, Barão Vermelho, Titãs e Os Abóboras Selvagens ganhavam cada vez mais fãs por todo o país. Nesse cenário, cabe uma menção honrosa ao poeta Cazuza, vocalista do Barão. Cazuza e Renato tinham estilos de vidas semelhantes, ambos assumiram a bissexualidade, tinham comportamentos destrutivos entre sexo e drogas. Ambos acabariam morrendo de AIDS, separados por um intervalo de seis anos.


'Dois' chegou às lojas em julho de 1986, sua sonoridade romântica e melancólica ganhou de vez os corações do público. Logo de imediato, percebe-se que as 12 canções possuem uma afinidade de contextualização entre elas: solidão, relacionamentos complicados, anseios, angústia e inconformismo. A faixa que abre o disco já destaca o tempero inovador do álbum, "Daniel Na Cova Dos Leões", reproduz fielmente os ganchos de guitarras e batidas de bateria do The Smiths. Com uma letra agridoce, esbanja o romantismo de Renato em versos emblemáticos e sensuais: "Teu corpo é meu espelho e em ti navego/E sei que tua correnteza não tem direção". A elegante e emotiva "Quase Sem Querer" se torna uma joia rara no disco. Sua letra narra um romance conflituoso, mas consegue cristalizar tão bem sua harmonia para não soar cinzenta.


A Legião definitivamente havia se encontrado como banda. Semelhanças com grupos como U2 e The Cure ganharam maiores proporções e isso se intensifica ainda mais em "Acrilic On Canvas", onde o grave da voz de Renato ganha proporções incríveis ao lado da melodia enxuta em bem trabalhada. As aventuras e desventuras românticas de um jovem casal é muito bem narrada no blockbuster "Eduardo e Monica", uma balada concentrada na alegria, tristezas e rotina que nos acompanham pela vida. A faixa ganhou de vez as rádios do Brasil, com uma história que leva o ouvinte a viajar por pensamentos sem sair do lugar, como se sua vida inteira passasse como um filme diante de seus olhos em três minutos.



Os versos imortalizados e agridoces de "Tempo Perdido" expelem uma nostalgia cativante, a música soa tão atual como se tivesse sido escrita no nosso tempo. Além disso, é a canção do disco que mais lembra as melodias de bandas inglesas como The Smiths e The Cure, tornando-se um vício insaciável. "Todos os dias quando acordo/Não tenho mais o tempo que passou/Mas tenho muito tempo/Temos todo o tempo do mundo", canta Renato no primeiro verso da canção. "Música Urbana 2" deságua no único blues do álbum, aliás, um dos pouquíssimos da trajetória da Legião.


'Dois' chega ao seu final sublime e impactante com a linda "Índios", aquela canção que te desperta inúmeros sentimentos e te faz arrepiar toda vez que você a ouve. Sua introdução profunda e direta a tornou uma das faixas mais adoradas de toda a discografia da banda. Uma melodia sutil e ao mesmo tempo, edificante, que cresce deliciosamente no refrão. A voz de Renato atinge seu ápice em uma das letras mais bonitas do grupo. "E é só você que tem a cura pro meu vício de insistir/nessa saudade que eu sinto/De tudo que eu ainda não vi." A interpretação de Renato é puro atrevimento.

 

Dois

Legião Urbana


Lançamento: julho de 1986

Gênero: Rock, Indie Rock, Pop

Ouça: "Eduardo e Monica", "Tempo Perdido" e "Índios"

Humor: Agridoce, Apaixonado, Reflexivo


 

OUÇA NO SPOTIFY:


 

OUÇA "ÍNDIOS"


 





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