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Elza Soares e o país que insiste em enterrar suas mulheres

Quando a voz some, a violência fala mais alto

Elza Soares
Cantora Elza Soares (Foto: Reprodução / Twitter)

Elza Soares avisou. Avisou antes de qualquer pesquisa, qualquer estatística, qualquer grito nas ruas. Avisou carregando no corpo as marcas de uma história que o país insiste em repetir: fome, abuso, espancamento, perda, silenciamento. O Brasil transformou Elza em mito, mas ignorou a mulher real, aquela que sobreviveu à violência que hoje consome, todos os dias, mulheres que nem chegam a ter um nome estampado no jornal.



A verdade é que celebramos a artista, mas nunca escutamos o que ela dizia. Elza cantou o Brasil como documento vivo: um lugar onde a vida de uma mulher vale menos do que o orgulho de um homem. Onde feminicídio ainda é tratado como acidente. Onde a dor feminina vira espetáculo, e não alerta.


Em “Maria da Vila Matilde”, Elza não interpretou: denunciou. Ali, ela transformou a cozinha — espaço supostamente doméstico, “seguro” — no epicentro da violência que acontece dentro das casas, atrás de portas trancadas, enquanto vizinhos fingem que não escutam. A música virou ata de ocorrência, sirene, soco na mesa. E ainda assim, nada mudou o suficiente.


Porque o problema nunca foi a roupa da mulher, nem o horário, nem o lugar. A violência contra a mulher no Brasil não persiste porque elas “não se defendem”. Persiste porque nós, homens, não paramos de atacar. Porque existe uma cultura inteira construída para fiscalizar a vítima e proteger o agressor.



É sempre a mesma pergunta torta: o que ela fez? O que ela vestia? Será que ela provocou? O país se ajoelha diante de uma lógica criminosa: a de culpar mulheres por existirem. E isso precisa acabar.


Não é ensinar mulher a atravessar a rua com chave entre os dedos. É ensinar homem a não atacar. Não é ensinar mulher a evitar lugares escuros. É ensinar homem a não ser a escuridão. Não é dizer às meninas para “se comportarem”. É ensinar meninos que corpo não é território de conquista.


E aí fica a pergunta mais incômoda, e mais necessária: que porra de masculinidade é essa que naturaliza violência? Que romantiza ciúme, que chama controle de cuidado, que trata frustração como justificativa para matar? E, acima de tudo, o que nós estamos fazendo para mudar isso?


A responsabilidade é nossa. Minha. Sua. De todo homem que vive dentro dessa cultura e finge que não faz parte dela. O feminicídio não cresce sozinho: ele é alimentado pelo silêncio, pela omissão, pelas piadas, pelos comentários, pela culpa jogada sempre no lado errado da história.


Elza sabia disso muito antes de virarem estatísticas. Ela viveu isso. Carregou no corpo e na voz uma denúncia que o Brasil demorou demais para escutar. E agora, quando mais uma mulher é apagada, fingimos surpresa, como se Elza não tivesse avisado.


O país que consagrou Elza é o mesmo que segue permitindo que mulheres morram. E enquanto isso não mudar, a voz dela continuará ecoando, não como saudade, mas como cobrança. Não como memória, mas como denúncia.



Elza não cantou para ser celebrada. Cantou para que ninguém mais precisasse gritar. Mas ainda estamos gritando, porque elas ainda estão morrendo. A pergunta é simples, pesada e inevitável: que tipo de homem você quer ser em um país que enterra mulheres todos os dias?



E enquanto essa resposta não mudar, continuaremos repetindo a tragédia, mesmo depois de ter sido avisados pela voz mais forte que o Brasil já ouviu.

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