David Lynch: Um adeus ao arquiteto do surreal
- Marcello Almeida
- 16 de jan.
- 3 min de leitura
“A vida é estranha e misteriosa. Abrace isso”

Hoje, o mundo do cinema se despede de David Lynch, um artista cuja visão moldou o imaginário do século XX e transcendeu o próprio cinema, tornando-se um marco na maneira como enxergamos a arte, a psique e os mistérios que residem no espaço entre o real e o sonho. Lynch, mais do que um cineasta, foi um artesão do incompreensível, um orquestrador de imagens que pareciam brotar de lugares inexplorados do subconsciente coletivo.
Nascido em Missoula, Montana, em 1946, Lynch cresceu entre o bucólico e o inquietante – duas forças que se tornariam fundamentais em sua obra. Sua filmografia, ao longo de décadas, funcionou como um espelho distorcido do mundo, revelando aquilo que preferimos não ver: os horrores sob a superfície da normalidade, a fragilidade da identidade e a beleza aterrorizante do absurdo.
Seu primeiro longa, Eraserhead (1977), já deixava clara sua assinatura: o preto e branco granuloso, a trilha sonora perturbadora e o desconforto que reverberava em cada frame. Uma obra que escapava à categorização, algo entre o pesadelo industrial e a fábula existencial. Foi um cartão de visitas que ninguém pôde ignorar, projetando Lynch como um autor único, desafiador, essencial.

Nos anos seguintes, ele nos entregaria obras que permanecem enigmáticas e profundamente humanas. The Elephant Man (1980), talvez um de seus filmes mais acessíveis, tocou o mundo com a história de John Merrick, mostrando que a sensibilidade de Lynch era capaz de transitar entre o bizarro e o profundamente emocional. Essa qualidade seria a chave de sua carreira: uma habilidade rara de encontrar poesia nos extremos, de unir o grotesco e o sublime.
Blue Velvet (1986) foi o filme que cravou Lynch no panteão dos grandes. Uma investigação da dualidade do sonho americano, onde um idílico subúrbio escondia segredos sombrios, simbolizados na violência contida em Frank Booth, interpretado de forma visceral por Dennis Hopper. Aqui, Lynch não apenas contava uma história; ele nos fazia sentir que o perigo estava ao nosso lado, escondido sob um sorriso ou atrás de uma cortina de veludo.
Não podemos falar de Lynch sem mencionar Twin Peaks (1990–1991; 2017), a série que redefiniu a televisão. Em Laura Palmer, encontramos o eixo de sua filmografia: a inocência perdida, o trauma não resolvido, os mistérios que nunca serão plenamente desvendados. Twin Peaks era um mosaico de vozes, imagens e sensações, e sua continuação, em 2017, com Twin Peaks: The Return, foi uma obra-prima que desafiou todas as expectativas. O episódio 8, em especial, é uma meditação visual e sonora sobre a criação, o mal e o impacto do tempo.
Cidade dos Sonhos (2001) consolidou seu status como o mestre do cinema onírico. Uma meditação sobre Hollywood, identidade e os labirintos do desejo, o filme é um quebra-cabeça inesgotável, tão fascinante quanto impossível de resolver completamente. Lynch sempre rejeitou interpretações definitivas, preferindo que suas obras fossem experiências sensoriais, algo que carregamos conosco, muito mais do que algo que explicamos.

Outros trabalhos, como Lost Highway (1997), Wild at Heart (1990) e Inland Empire (2006), reforçaram sua inclinação por narrativas fragmentadas e atmosferas inquietantes. Mas Lynch nunca se limitou ao cinema. Ele era pintor, músico, escritor, meditador e criador de universos. Sua abordagem artística era total, transcendente, como se ele estivesse constantemente em busca de um portal para outras realidades.
É impossível ignorar o impacto que Lynch teve em cada um de nós que ousou entrar em seus mundos. Ele nos mostrou que o cinema não precisa ser linear, que a arte não precisa ser explicada, que o desconforto pode ser belo e que os sonhos – mesmo os mais perturbadores – têm algo a nos dizer.
Lynch deixa um legado imensurável, uma filmografia que será dissecada, admirada e reinterpretada por gerações. Mas, acima de tudo, ele nos deixa com um convite: olhar para além da superfície, abraçar o desconhecido e ouvir as vozes do silêncio.
Como ele mesmo disse uma vez: “A vida é estranha e misteriosa. Abrace isso.” E nós abraçaremos, Lynch. Obrigado por nos ensinar a ver.
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