top of page

A carne é fraca — mas Lady Gaga nunca foi

Atualizado: há 14 horas

Um pedaço de carne crua pode apodrecer em horas. Mas nas mãos de Lady Gaga, ele virou eternidade

Lady Gaga no VMA (à esq.) e em capa da revista Vogue Japonesa, ambos momentos em 2010
Foto: Mark Ralston/AFP/Divulgação

Quatorze anos depois de pisar no VMA coberta por bifes, ela desembarca no Brasil com a mesma aura: uma performance viva, cortante, incômoda. Neste sábado (3), a Praia de Copacabana deixa de ser apenas um cartão-postal para se tornar altar. Lady Gaga está de volta — e o mundo ainda está tentando entender o que ela fez em 2010.



Na época, o vestido de carne não era só um look. Era uma afronta. Era Gaga, literalmente, vestindo o desconforto. Com sapatos sangrando, bolsa pingando e um chapéu feito de músculo, ela forçou os olhos do mundo a encarar a arte como provocação — e não como ornamento.


O estilista argentino Franc Fernandez, que costurou o traje com cortes comprados no açougue da própria família, definiu bem o espírito do projeto: “Parecia errado, então foi divertido de fazer”. Gaga sequer experimentou o vestido antes da cerimônia. Não precisava. Ela sabia que aquilo nasceria icônico.


Lady Gaga presente no VMA 2010 — Foto: Mark Ralston/AFP
Lady Gaga presente no VMA 2010 — Foto: Mark Ralston/AFP

Antes mesmo do tapete vermelho, a artista já brincava com a estética carnívora. Estampou a capa da Vogue Japan usando um biquíni de bife. Mas o que aconteceu no VMA foi outra coisa. Foi cena. Foi cinema. Ela chegou como uma rainha futurista de Alexander McQueen, trocou por Armani no meio da noite e, no clímax, se apresentou como um corpo exposto — uma denúncia silenciosa feita com sangue nos olhos e nas roupas.



“Carne morta é carne morta. Qualquer um que esteja disposto a tirar a própria vida por seu país é o mesmo. Você não é um morto gay ou um morto hetero. Você é morto”, disse Gaga à Vogue anos depois. Era disso que ela falava. Da política do exército americano que impedia militares de falarem sobre sua orientação sexual — o infame “don’t ask, don’t tell”. A resposta dela foi visceral.


Lady Gaga presente no VMA 2010 — Foto: Reprodução/YouTube
Lady Gaga presente no VMA 2010 — Foto: Reprodução/YouTube

Na plateia, expressões congeladas. A câmera captou o exato instante em que o mundo parou para tentar entender o que ela queria dizer. Cher, que entregou o prêmio da noite, segurou a bolsinha feita de carne com um misto de horror e fascínio. Ellen DeGeneres, então vegana, questionou: “Qual a diferença entre essa roupa e uma peça de couro?” — e ali, a reflexão venceu o choque.


A Time não teve dúvidas: elegeu o look como o momento fashion mais impactante de 2010. Não era sobre beleza. Era sobre desconforto. Sobre provocar perguntas que não se resolvem com estilo.


Entre análises que pipocaram depois da premiação, vieram teorias: o vestido seria uma crítica à objetificação feminina? Um deboche à indústria da moda? Um tapa na cara de quem come carne sem pensar duas vezes? Talvez fosse tudo isso. Talvez fosse apenas Gaga sendo Gaga — misturando teatro, moda e música num único gesto.


O consenso é um só: era perturbador. E, como toda boa arte, continuou sendo.

Naquela noite, Gaga levou oito prêmios. Mas o maior deles não tinha nome nem categoria. Era o feito de transformar pedaços de carne em símbolo. Uma alegoria viva de sua própria essência: instável, política, fora de controle.



Hoje, a maré de Copacabana vai presenciar outro momento histórico. E embora Gaga venha com outra roupa, outro show, outro tempo, uma coisa não mudou: ela ainda é o desconforto que a cultura pop precisa.


Porque, às vezes, é preciso vestir a carne pra mostrar o que existe de mais humano sob a pele.

Comentarios


bottom of page