Desafiando fronteiras e explorando territórios musicais inexplorados, o grupo mostra uma vitalidade renovada
Dentro da esfera progressiva, o Sleepytime Gorilla Museum é uma banda de rock experimental e vanguardista, logo, fica evidente que sua proposta musical pode ser difícil de ser abraçada por um grande público. Se você é aquele tipo de ouvinte que não se dá muito bem com sonoridades fora do padrão, digamos assim, por mais que eu queira “vender o peixe” por meio dessa resenha, dificilmente você vai se interessar em deixar qualquer uma das músicas desse álbum acabar, a tendência vai ser sempre pular para a próxima – até mesmo as duas que tem apenas um minuto e meio. Inclusive, espero estar exagerando.
Fundado em 1999 em Oakland, Califórnia, o Sleepytime Gorilla Museum destaca-se pela fusão de vários temas em sua expressão musical única. A banda tornou-se distintiva não apenas por suas composições sonoras intrincadas, mas também por suas performances ao vivo elaboradas, que transcendem os limites tradicionais de um espetáculo musical. Além disso, o grupo tem o hábito de explorar e compartilhar narrativas possivelmente fictícias relacionadas a artistas dadaístas e matemáticos durante suas apresentações, e com isso, adicionando uma camada de complexidade lírica em seu som já complexo.
Não sei se encaro o lançamento desse disco como uma “espera de 13 anos”, já que em 2011 a banda simplesmente parou suas atividades, confesso que até achei que haviam acabado, mas quando fiquei sabendo do seu retorno em 2023, já me animei por um disco novo, algo que não demorou para acontecer, com Of The Last Human Being sendo lançado no dia 1º de fevereiro.
Por meio de uma pequena pesquisa, descobri que a banda chegou a começar a escrever esse álbum ainda em 2011, com isso, boa parte do que é encontrado em Of The Last Human Being, de certa forma, vem de uma continuação orgânica do seu álbum anterior, com isso, quem gostava da banda vai continuar gostando, e quem nunca a entendeu muito bem, vai continuar com as mesmas interrogações na cabeça. No entanto, seguir um curso natural não impede a banda de proporcionar algumas surpresas instigantes ao longo dos 65 minutos que compõem o disco.
A formação da banda conta com Nils Frykdahl (guitarra e vocal), Carla Kihlstedt (violino, percussão, guitarra, baixo, harmônica e vocais), Michael Mellender (guitarra, xilofone, trompete, percussão e vocais), Dan Rathbun (baixo, dulcimer e vocais) e Matthias Bossi (bateria, glockenspiel, xilofone, piano e vocais de apoio). Mantendo assim, os mesmos 5 músicos que há 17 anos gravaram In Glorious Times, último disco da banda antes de Of The Last Human Being.
Free Salamander in Two Worlds é a música de abertura, uma peça que se refere a Ishi in Two Worlds, livro escrito por Theodora Kroeber, porém, usando de licenças poéticas e metafóricas. Um relato biográfico de Ishi, o último membro conhecido do povo nativo, Yahi e que vivenciou uma série de eventos dramáticos que marcaram sua vida e, por extensão, a história de seu povo. A peça se desenvolve dentro de linhas melódicas produzidas cuidadosamente dentro de complexidades e dinâmicas instrumentais bem ornamentadas. Enquanto isso, os vocais quando acionados, soam fúnebres e carregados de “sombriedades”, palavra que embora creio que nem exista no dicionário formal, aqui cabe melhor do que qualquer outra. O álbum já inicia com uma peça que transborda riqueza harmônica e impressiona pela atenção meticulosa aos detalhes em sua construção.
Fanfare for the Last Human Being, é uma das duas músicas com cerca de um minuto e meio. Totalmente instrumental, possui uma atmosfera singular, com destaque para as fortes linhas de violino que mesclam o folk tradicional com um ar sombrio. Vale mencionar também, que embora curta em sua natureza instrumental, possui uma enorme capacidade em envolver o ouvinte em uma tapeçaria sonora bastante rica.
El Vivo tem todas as estranhezas que fazem com que algumas pessoas acolham a banda, enquanto outras a abandone, de qualquer forma, sua construção intrincada e desafiadora faz com que seja impossível se manter indiferente. Carla Kihlstedt proporciona alguns ataques tempestuosos de violinos que são realmente brilhantes. Guitarras industriais e vanguardistas, seção rítmica opulenta e vocais apavorantes. Não se trata apenas de uma música, mas linhas sonoras que cativam, desafiam e recompensam aqueles que se aventuram em seu reino.
Bells for Kith and Kin, os sinos que encerram a música anterior são os mesmos que iniciam aqui. Outra peça com cerca de um minuto e meio. Por meio de uma maneira hábil e melódica, os sinos ressoam como se transportasse o ouvinte para uma espécie de prece musical. Esse interlúdio não é apenas um intervalo musical, longe disso, também é uma pausa reflexiva que proporciona um contraste intrigante entre ele e as músicas que o cercam.
Silverfish, o cantar melancólico e sombrio de Carla Kihlstedt serve perfeitamente como uma trilha sonora para uma dança intrincada proporcionada pela luz e a escuridão. Isso unido à uma atmosfera etérea, onde parece que a qualquer momento vai abrir algum portal para um reino desconhecido. Tons evocativos de violino pincelam um quadro sonoro de uma forma encantadoramente taciturna. Novamente, não parece ser apenas uma música, é como se fosse um ritual, guiando o ouvinte por um caminho espiritual por meio de texturas sonoras ricas e bem confeccionadas.
S.P.Q.R., quando vi o título dessa música, já me veio o império romano em mente, já que o seu nome é a sigla do nome que os romanos deram a si mesmo, Senatus Populus Que Romanus – e realmente o tema é esse. Musicalmente, se trata de uma celebração do virtuosismo musical, da energia caótica e da capacidade de criar paisagens sonoras da forma que a banda mais gosta, ou seja, desafiando os padrões convenções. Apesar de frenética, também possui uma atmosfera que faz parecer que estamos dentro de um ato ritualístico.
We Must Know More, possui uma orquestração bastante peculiar, com trabalhos de tuba e trombone, instrumentos mais associados à música clássica, assumindo completamente o protagonismo, funcionando dentro de um propósito diferente do habitual. A atmosfera da música em boa parte se desdobra dentro de uma espécie de tema circense completamente macabro. Apesar de ser uma peça que não usa guitarra e baixo, consegue entregar uma musicalidade intensa, onde o convencional parece ser subvertido, enquanto que a musicalidade é reinventada. Vale destacar também os vocais de Nils Frykdahl, que muitas vezes soam como se estivessem repreendendo o ouvinte.
The Gift é aquele tipo de música que mergulha de cabeça dentro dos reinos mais vanguardistas da música progressivo, ou seja, aquela variação que é uma das mais incompreendidas. A faixa se destaca por seus ataques raivosos, tanto instrumentalmente quanto vocalmente, criando uma intensidade que é simultaneamente inflamada e intransigente. Por outro lado, ainda há algumas entregas sombrias que preenchem os intervalos entre as explosões instrumentais técnicas e viscerais. The Gift é aquele tipo de música que deixa uma impressão duradoura naqueles dispostos a se aventurar em sua complexidade musical intrincada.
Hush, Hush, aquela voz frágil, delicada e quase sussurrante de Carla Kihlstedt está de volta. Vai crescendo aos poucos, começando quase à capela e tendo os instrumentos entrando de forma gradativa, até o momento em que os vocais suaves de Carla cedem passagem para uma explosão instrumental, com destaque para o riff da guitarra, principal responsável em aumentar a tensão da música. A peça silencia novamente, enquanto Carla retoma o controle após a vertiginosa sequência metálica, demonstrando ser uma guia musical bastante hábil. A habilidade da banda em mesclar elementos contrastantes mais uma vez é evidente. A faixa também saiu em vídeo pelo Youtube, sendo essa experiência audiovisual assombrosa, um testemunho que faz parecer que há uma preocupação da banda em proporcionar um desconforto a cada frame.
Save It! é uma música que eu adorei, só acho deveria ser maior, pois pouco menos de três minutos eu achei pouco – embora ela consiga entregar bastante coisa nesse curto espaço de tempo. Possui uma mistura eclética de influências dentro da música progressiva de vanguarda, criando uma experiência sonora que desafia as categorizações tradicionais, oferecendo uma viagem musical inovadora e vibrante. Basicamente, do começo ao fim, o ritmo frenético abraça a música, envolvendo os ouvintes em uma coreografia musical imprevisível.
Burn Into Light é completamente impetuosa, enérgica e complexa. A dualidade entre o cativante e o assustador é habilmente tecida, proporcionando uma experiência multi-sensorial. Vale lembrar, que Burn into Light também foi lançada com um vídeo no Youtube, tirando-a de um mero experimento musical, para se tornar uma verdadeira narrativa de horror e terror a ponto de dar um certo desconforto no ouvinte – assim como acontecem em Hush Hush. Somente assistindo ao vídeo que a experiência estará completa, todo o caos mágico que se desenrola diante dos nossos olhos faz parte da essência da peça.
Old Grey Heron é a primeira música do disco que eu apresentaria pra alguém menos “vacinado”, digamos assim, em relação ao som da banda. Possui menos experimentalismo, além de ser uma entrega musical com menos fúria e mais placidez, porém, sem deixar de lado a atmosfera sombria que permeia todo o disco. Manifestações vinculadas a vanguarda do rock progressivo também são quase nulas. A maior surpresa, com certeza fica por conta da introdução de trombeta – embora seja um uso tímido. Muitas bandas poderiam lançar um disco e ter uma música como essa como a peça mais audaciosa do álbum, mas o assunto é o Sleepytime Gorilla Museum, e nesse caso, isso provavelmente é o que de mais normal eles conseguem fazer.
Rose-Colored Song é a peça que encerra essa viagem musical encantadora repleta de ondulações e nuances, além de ter a capacidade de nos transportar para um cenário onde o fantástico e o peculiar coexistem harmoniosamente. Tudo começa bonito e até alegre – na medida do possível -, porém, essa atmosfera vai dando lugar a uma sonoridade cada vez mais aterradora. Sombrio, tenebroso, fúnebre, sepulcral, um final de disco que apenas confirma a posição do Sleepytime Gorilla Museum como uma força criativa excepcional dentro do movimento mais vanguardistas do rock progressivo.
Ao ressurgir através de Of The Last Human Being após um intervalo de 13 anos, o Sleepytime Gorilla Museum não apenas retorna ao cenário musical, mas o faz de maneira magistral. Desafiando fronteiras e explorando territórios musicais inexplorados, o grupo mostra uma vitalidade renovada, expondo claramente que a passagem de tempo não diminuiu em nada a sua audácia artística. Seu retorno não é apenas um evento musical, mas uma celebração da resiliência criativa e da busca contínua por novas fronteiras musicais.
Of The Last Human Being
Sleepytime Gorilla Museum
Ano: 2024
Gênero: Art Metal, Música de Vanguarda, Música Experimental, Rock Progressivo
Ouça: "El Vivo", "Silverfish", "Burn Into Light", "Hush Hush"
Humor: Dramático, Angustiante, Aterrador
Pra quem curte: Höyry-Kone, Univers Zero, Art Zoyd
NOTA DO CRÍTICO: 9,5
Abaixo, assista aos vídeos de "Hush Hush" e "Burn Into Light":
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