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Scary Monsters é David Bowie dizendo que gritar também é uma forma de amar

Porque ali, entre a fúria e a sofisticação, entre a dor e a ironia, ele ainda estava inteiro. Ferido, mas inteiro

David Bowie
Imagem: Reprodução

É mágico quando nos deparamos com um disco que nos desafia, que nos encara de frente sem pedir licença. Chega como uma tempestade em um dia cinzento, mas depois se torna o arco-íris no fim. Discos assim têm, por si só, um toque de existencialismo — te questionam: você ainda sente alguma coisa? Scary Monsters é um desses.



A sensação que temos aqui é que Bowie está voltando do labirinto — só que, em vez de sair limpo, ele retorna coberto de poeira, lascas de espelho e com uma guitarra de Robert Fripp cravada no peito. Não é um recomeço; é um fim em chamas. O último grito verdadeiro antes da década de verniz, ternos largos e refrões fáceis. Um disco em que cada som é uma escolha existencial, cada ruído, uma memória deformada, e cada verso, um duelo entre quem Bowie foi e quem ele se recusava a se tornar.


“Teenage Wildlife” não é só uma canção. É um soco existencial dado com a mão aberta. Uma carta amarga ao próprio reflexo, um desabafo feroz contra os clones, os garotos-prodígio, os aspirantes a messias pós-punk que tentavam vestir a pele que ele já havia queimado. E é ali que Robert Fripp entra, não como guitarrista, mas como entidade. Ele rasga a melodia, como se a música estivesse tentando escapar dele.


As notas não são ornamentos, são hemorragias. E Bowie canta com uma dor que só o tempo sabe ensinar. "The fingerprints will prove that you couldn't pass the test” – e de repente o mundo inteiro parece pequeno demais para conter o que ele sente. É arte em pura combustão.



Scary Monsters é o Bowie híbrido. Ainda experimental, mas mais afiado. Ainda provocador, mas sem disfarces. O new wave é só um pano de fundo — o camaleão não está surfando modas, está zombando delas. “Fashion” não é um hit dançante, é uma emboscada. Uma crítica sarcástica à indústria que transformava atitude em produto. E mesmo quando ele parece brincar com a forma, como em “Up The Hill Backwards”, há algo de profundamente inquieto ali — uma angústia entre os compassos, uma tentativa desesperada de continuar andando, mesmo com os olhos vendados e o mundo desmoronando atrás.


E então vem Ashes to Ashes — o requiem de um astronauta. O funeral de Major Tom. A reinvenção de uma lenda, agora vista por dentro, suja, trêmula, destruída pelo próprio criador. Bowie canta como quem se confessa. A faixa inteira pulsa como um delírio elegante. O baixo sintetizado é um batimento irregular. Os vocais, um sussurro fantasmagórico. E no centro de tudo, a letra: devastadora, confessional, aguda. O herói do espaço virou viciado. O ícone virou aviso. Bowie nos mostra como se mata um mito — e como se sobrevive à própria ruína.


O que Scary Monsters faz, no fundo, é pegar toda a reinvenção dos anos 70 — do Ziggy ao Thin White Duke, de Berlim à loucura do glam — e destilar isso num só organismo sonoro. É Bowie dizendo: “Vocês querem entender quem eu fui? Pois aqui está a cicatriz.”


A faixa-título é pura neurose urbana. “She asked me to stay and I stole her room,” ele canta, entre ruídos, dissonâncias, e uma batida que soa como a ressaca do fim do mundo. “It’s No Game” abre e fecha o disco como um ritual — primeiro com gritos dilacerantes, depois com um Bowie quase resignado, como se o jogo, enfim, tivesse acabado. Mas que jogo era esse? O da sobrevivência? O da identidade? O da arte? Talvez todos ao mesmo tempo.


Este não é um disco bonito. É um disco necessário. Porque beleza, às vezes, está nas rachaduras. Porque gritar também é forma de amar.


E, quando ele grita — e Fripp responde com uma guitarra que mais parece uma tempestade elétrica atravessando o corpo —, você entende: Scary Monsters não quer agradar, quer libertar. Nem que seja à força. Talvez por isso ele seja o último clássico incontestável de Bowie até o fim. Essa frase não é exatamente uma verdade, tampouco um veredicto.



Porque ali, entre a fúria e a sofisticação, entre a dor e a ironia, ele ainda estava inteiro.

Ferido, mas inteiro.



E isso, num mundo que vive se desintegrando, é quase um milagre. E qualquer semelhança com a nossa atualidade é mera coincidência.


Será?

⭐️⭐️⭐️⭐️

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