Raul Seixas, 80 anos — ainda é cedo pra dizer adeus
- Marcello Almeida
- 29 de jun.
- 3 min de leitura
Ele não morreu. Ele se mandou

Num país que ainda se ajoelha pros mesmos de sempre, Raul Seixas foi o grito que não se calava nem com porrada, censura ou exílio espiritual. Ontem ele faria 80 anos. Mas Raul nunca foi número. Nunca foi idade. Nunca foi normal. Ele foi fenômeno. Meteoro. Messias tropicalista com jeans rasgado e Bíblia apócrifa debaixo do braço. Um artista que entortou a lógica da MPB com rock’n’roll esculachado, samba mutante, baião lisérgico e filosofia de esquina. Um homem que pegou o microfone e cuspiu verdades numa língua que misturava Nietzsche, cordel, Aleister Crowley e pavê de vó.
Enquanto tem gente que ainda tenta reduzir Raul à decadência dos últimos anos, à cirrose ou às dívidas, a gente precisa lembrar: o cara foi mais que isso. Muito mais. Foi um arquiteto da desobediência. Um dos maiores compositores que essa terra já viu. Um gênio que tirou do caos as palavras mais iluminadas — e colocou melodia onde só existia grito.
Raul era um sistema solar próprio. E quem orbitava com ele, orbitava sob risco. Com Paulo Coelho, formou uma das parcerias mais subversivas e mágicas da música nacional. Sociedade Alternativa, Al Capone, Gita, Ouro de Tolo, Tente Outra Vez, Medo da Chuva, Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás. Cada faixa era um portal. Cada disco, um ritual. E por mais que tenham tentado domar a fera — com camisa de força, exílio ou contratos — ele sempre voltava, desafinando o coro dos contentes com a fúria de quem sabe que o mundo só muda na marra ou na música.
Foi com Krig-Ha, Bandolo!, lançado em 1973, que Raul Seixas chutou a porta do cenário musical brasileiro e entrou feito profeta de guitarra em punho. Um disco que é quase um manifesto — cru, alucinado, incendiário — onde ele já apresentava sua filosofia de ruptura, sua verve literária, sua alquimia sonora que misturava Elvis com Lampião, rock com esoterismo, baião com libertação. Era mais que um álbum: era uma senha pra quem queria escapar da mesmice. A estreia solo mais potente da música brasileira, onde Raul nos apresenta não só um estilo, mas um universo próprio.
Raul foi punk antes do punk. Foi místico antes do esoterismo virar produto de Instagram. Foi o primeiro e único verdadeiro roqueiro do Brasil que entendeu o rock como linguagem de guerrilha. Não como estética, mas como ética. Não como gênero, mas como gesto. Foi ele quem disse que preferia ser “essa metamorfose ambulante” — e talvez por isso mesmo nunca coube em prateleira alguma. Nem viva, nem morto.
Hoje, 80 anos depois do seu nascimento, Raul é mais necessário do que nunca. Porque a mediocridade ainda manda no rádio. Porque os falsos profetas ainda lotam arenas. Porque os acomodados ainda zombam dos que ousam. E porque ainda precisamos de artistas que não tenham medo de dizer: eu não sou louco, é o mundo que não entende minha lucidez.
Raul era a contradição em carne viva. Um homem do sertão baiano que entendeu Elvis melhor que muito americano. Um filósofo sem diploma que escreveu sua Bíblia com notas musicais. Um visionário que enxergava além da curva — e ria. Ria porque sabia que ninguém escapa da própria sina, mas pode dançar enquanto ela se desenha.
Se Raul estivesse vivo, talvez dissesse que 80 anos é só mais uma pegadinha do tempo. Que a vida é uma ilusão controlada. Que a morte é só uma troca de roupa. Mas ele não tá. E tá. Porque Raul vive em cada moleque que monta uma banda na garagem querendo mudar o mundo com três acordes e uma verdade. Vive em cada mulher que se recusa a calar, em cada cidadão que se levanta contra o absurdo, em cada artista que escolhe a liberdade, mesmo que isso custe tudo.
Raul, onde quer que você esteja: a gente ainda escuta tua voz gritando no fundo do peito. A gente ainda acredita na sociedade alternativa. A gente ainda tenta outra vez.
E a gente não vai deixar esquecer que você foi — e sempre será — um dos maiores de todos.
Viva Raul. Pra sempre Raul.
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