Por que ainda ouvimos Papai Noel Velho Batuta, do Garotos Podres
- Marcello Almeida
- há 11 horas
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Ela incomoda porque diz o óbvio que ninguém quer ouvir. E o óbvio, em certos tempos, vira ameaça.

Porque o Natal continua sendo uma vitrine desigual, e alguém precisa quebrar o vidro.
Quando os Garotos Podres lançaram “Papai Noel Velho Batuta”, em 1985, não estavam interessados em blasfêmia gratuita nem em atacar a fé de quem quer que fosse. O alvo sempre foi mais concreto e incômodo: a hipocrisia de uma celebração que promete fraternidade universal, mas distribui seus milagres de forma seletiva. O Papai Noel da canção não é um personagem infantil; é um símbolo. Um emblema de um sistema que fantasia justiça enquanto normaliza a exclusão.
Na letra, o Natal aparece como espetáculo. Luzes acesas, vitrines cheias, discursos sobre amor ao próximo, tudo funcionando perfeitamente para quem pode consumir. Para quem não pode, resta a sensação de estar do lado de fora, olhando pela janela. A revolta expressa na música nasce desse abismo. Não é violência literal; é linguagem extrema para dar forma a uma indignação real, social, cotidiana. O punk sempre falou assim porque nunca teve espaço para falar baixo.
O contexto importa. Em meados dos anos 80, o Brasil ainda respirava os últimos gases de uma ditadura que censurava não só ideias políticas explícitas, mas qualquer manifestação que ameaçasse a ordem simbólica. A música chegou a ser mutilada, obrigada a trocar título e versos para circular. Mesmo assim, sua essência permaneceu intacta: denunciar que, para muita gente, o Natal simplesmente não existe. Existe fome, existe desigualdade, existe abandono, e nenhuma noite mágica resolve isso.
Quatro décadas depois, a canção retorna ao centro do debate não por ter envelhecido mal, mas pelo contrário: porque envelheceu bem demais. Em 2025, uma apresentação da música volta a gerar reação policial, como se a arte precisasse novamente se explicar diante da moral ofendida. O que isso revela não é um excesso da obra, mas uma fragilidade do presente. Quando a sátira vira crime e a metáfora vira ameaça, algo está profundamente fora do lugar.
Ainda ouvimos “Papai Noel Velho Batuta” porque o consumismo continua vendendo felicidade como mercadoria, enquanto a desigualdade segue sendo tratada como detalhe.
Ainda ouvimos porque a raiva que a música canaliza não desapareceu, apenas mudou de cenário. Ainda ouvimos porque o punk, quando é verdadeiro, não perde validade: ele reaparece sempre que o mundo insiste em repetir seus erros.
No fundo, a canção não grita contra o Natal. Ela grita contra a mentira.











