A girafa é alta, pode observar tudo de cima.
A primeira questão que surge na cabeça ouvindo o novo trabalho da cantora e compositora carioca Leticia Novaes, cujo o nome artístico é Letrux, é: qual bicho você vai querer ser para encarar a “doidera” de morar nesse país? Em ‘Letrux Como Mulher Girafa’, seu terceiro disco solo, a cantora solta os bichos da selva para criar uma metáfora sobre a existência humana. Logo fica perceptível, entre uma faixa e outra, a notável influência do clássico ‘A Revolução dos Bichos’. A própria artista revelou em entrevistas recentes que teve uma crise existencial após ler o icônico livro.
A girafa é alta, pode observar tudo de cima. Então a ideia central do disco e de Leticia como uma mulher artista, é ficar de olho em todos aqueles selvagens que querem devorá-la. Ela liberta seus bichos interiores para traçar um olhar atento e cuidadoso para o cotidiano de sua vida, sua geração, e aprendendo e vendo como é amar hoje em dia, como é se apaixonar, como é enfrentar o capitalismo, como é ter que matar um leão por dia para sobreviver nessa selva sem dó e piedade.
São muitas metáforas soltas ao longo de 16 faixas, que deixam pelo caminho algumas vinhetas, entre texturas, ruídos e sons de animais. Por fim, tudo se resume a sentimentos saltitantes e momentos de pura vulnerabilidade, que são embasados por canções que abraçam o universo sonoro eletrônico e camadas repletas de efeitos que introduzem um certo fresco psicodélico sedutor, enquanto ela canta versos vorazes como na faixa de abertura "As Feras, Essas Queridas". "Embora não pareça, foi com amor que eu te destrinchei, te cacei pra mim, te tirei o couro", canta ela. Uma canção que faz um belo uso dos sintetizadores e batidas, que já deixam no ar a atmosfera e potência da obra.
Muito do clima do disco vem da bagagem do produtor João Brasil, que consegue resgatar autenticamente o som dançante do álbum de 2017 da cantora, 'Letrux em Noite de Climão'. Isso fica bem caracterizado na faixa pop, "Louva Deusa", que abre com sons de gaivotas e coloca mais uma vez em evidencia o poder lírico de Letrux. Algo nessa faixa emula, agridocemente a sonoridade do cantor George Michael. "Formiga" é um dos pontos altos da obra. Uma canção que bebe da vertente do rock e mistura vocais cantados em português e inglês. A cantora carioca usa da fauna e flora para desmistificar a essência da natureza humana.
É como se cada faixa do álbum tivesse sido pensada e programada para agir como uma síntese de informações que agregam décadas de influências, estilos e abordagens criativas distintas, como uma progressão orgânica do que é mais evidente na obra de Leticia. Em "Zebra", por exemplo, a compositora traz a certeira colaboração com Lulu Santos, em uma faixa que cresce com sintetizadores selvagens e enaltece os ritmos envolventes dos anos 80, um Synth-Pop envolvente e encorpado com uma certa nostalgia contagiante. Música como "Abelha" e "Leões" acena para o antigo projeto da cantora com seu ex-marido, Lucas Vasconcellos, o Letuce.
Segundo a própria compositora, o disco foi dedicado a ilustre e saudosa Rita Lee (1947 – 2023), “uma mulher girafa especial em minha vida”. E essa homenagem e influência da rainha do rock fica bem evidente na enérgica "Teste Psicológico Animal", que emula primorosamente a fase dançante de Rita na áurea dos anos 80. Uma canção que resume e defende toda a ideia elaborada durante o disco, uma crítica atualizada sobre o caos Brasil, as correrias do dia a dia, os achismos jogados no ar, o conformismo da era modernista, avanços tecnológicos e a vida projetada nas redes sociais. Em meio a esse turbilhão incandescente, seja uma girafa.
Letrux Como Mulher Girafa
Letrux
Lançamento: 30 de junho de 2023
Gênero: Pop Rock, Synth-Pop, Pop
Ouça: "Teste Psicológico Animal", "Formiga", "Louva Deusa"
Humor: Enérgico, Provocativo, Dançante
Pra quem curte: Letuce, Karina Buhr
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