Entrevista: Varal Estrela e o Auto da Virada – quando a arte decide não voltar pelo mesmo caminho
- Marcello Almeida
- há 16 horas
- 8 min de leitura
Entre o experimental e o popular, a banda de Itapeva desafia os limites da música brasileira

Eles não estão aqui pra seguir roteiro. A Varal Estrela vem dobrando as esquinas da música brasileira com a calma de quem sabe exatamente pra onde vai — e com a ousadia de quem não tem medo de se perder no caminho. “O Auto da Virada” não é só um disco: é um manifesto de maturidade, um mergulho em águas fundas onde o soul encontra o rock, o samba desafia o jazz e a MPB vira território livre pra experimentação.
A banda de Itapeva cresceu, mas sem perder a essência. E nessa entrevista, a gente foi fundo no processo criativo, nas referências, nas dúvidas e nas viradas que moldaram esse segundo álbum. Tem desabafo, tem filosofia de boteco, tem técnica, tem sentimento. Um papo reto com quem faz música com o coração aberto e os ouvidos afiados.
Porque no Varal, tudo se estende, se dobra, se transforma. E a gente quis entender: o que mudou? O que ficou? E pra onde esse varal ainda vai balançar?
“O Auto da Virada” soa como um disco que amadureceu junto com vocês. Em que momento vocês perceberam que estavam fazendo algo diferente do primeiro álbum — e como foi esse “despertar”?
VARAL ESTRELA: Acreditamos que o momento de virada se inicia com a entrada do nosso produtor musical Rafael Barone, antes da produção desse segundo álbum. Desde de sua primeira produção com a gente com o single “Miguel”, percebemos que nossas ideias se conectam principalmente em relação ao nosso pensamento em querer trabalhar o groove, a banda soando como uma unidade e tudo isso resultando numa sensação bem brasileira, tropical. A mudança de formação da banda, agora incluindo Marina Dias na bateria e Júlia Sanchez no vocal, também definiram essa nova identidade como um todo.
O disco tem uma força coletiva muito clara, desde a composição até os arranjos. Como foi esse processo de construir uma musicalidade que é de todos e, ao mesmo tempo, tem a cara de cada um?
VE: Acreditamos que tudo se inicia com um “sim”. Foi preciso dizer “sim” pra ideia da outra pessoa e criar a partir dela, não deixando de lado a própria identidade mas sim, somando e formando uma nova, diferente, interessante.
Durante a pré-produção, Rafael propôs uma série de exercícios de composição coletiva que gerou ótimos frutos como “Apanhou as Chaves”, “Mãe” e “Feito Pra Você”. Na banda, todos os integrantes também compõe, isso não é algo comum e é uma característica interessante nossa explorada durante todo o processo.
Com cada um tendo sua potencialidade, o momento de magia do coletivo se deu em nossa convivência numa chácara em São Roque, interior de São Paulo, com a intenção de construir o álbum juntos, voltando para as raízes da banda, para o contato com a natureza e do tempo natural das coisas, deixando a criação individual e coletiva fluir. Fizemos isso através de muitas horas de ensaios com as músicas que já tínhamos selecionado anteriormente, sentindo e entendendo como elas fluíam, soavam, faziam sentido.
Curioso contar que durante o momento de pré-produção do álbum na chácara, fizemos uma festa de ano novo fora de época de maneira espontânea, movidos por esse sentimento de renovação que estava pairando durante a construção desse álbum
Tem um certo espírito tropicalista atravessando o disco — na liberdade estética, na mistura dos estilos, na escolha dos timbres. O quanto o experimentalismo dos Mutantes e da Tropicália influenciou a construção desse álbum?
VE: Com “O Auto da Virada”, nos identificamos com o espírito tropicalista principalmente por conta da mistura, da abordagem eclética que nos interessa, fundindo elementos da cultura popular brasileira como o samba com influências do rock, groove e da cultura pop estrangeira, referenciando os anos 60 e 70 de maneira muito evidente no som e também na nossa estética visual como um todo.
Faixas como “Serpente” e “Flor de Maio” têm uma densidade emocional e uma complexidade musical que saltam aos ouvidos. Vocês sentem que essa combinação entre dor, beleza e groove é uma espécie de identidade do Varal?
VE: As baladas e músicas mais densas emocionalmente já faziam parte do nosso DNA como as faixas “Seguir” e “Sem Fim” do primeiro álbum. Dessa vez, escolhemos um caminho ainda mais profundo para abordar esse universo.
Partir da música como reflexo da nossa vida, um espelho, uma abstração do que aquele momento quis dizer, uma criação sobre um fato, foi o mote principal dessas canções. “Serpente” tem quatro momentos muito distintos dentro de uma mesma música porque foi assim que o sentimento se mostrou: complexo, cheio de camadas, humano. Então, a tradução dele em música também se deu nesse sentido. “Flor de Maio” também se trata dessa maneira, de algo bonito que teve o seu fim de maneira aceita, encarada com maturidade apesar da dor, como pode ser interpretada a linha de guitarra melancólica falando isso ao final da canção.
Só foi possível chegar nos resultados dessas duas músicas por conta do acolhimento do sentimento de um pelos outros. Por isso, acreditamos que essa criação de identidade da banda existe e de maneira genuína, pois partimos de nós primeiro de tudo e do nosso encontro dentro disso.
“Mãe” tem uma delicadeza quase desarmante. Em meio a tantas camadas sonoras no disco, o que levou vocês a optarem por essa entrega mais crua, mais direta, nessa faixa?
VE: Desde o primeiro olhar em cima da composição feita com letra do Rodolfo e música do Lucas, o arranjo simples fez todo o sentido com a temática da canção e o que ela dizia. Inevitavelmente, a força e o impacto que a letra nos mostrou, nos levou a economizar nos instrumentos e trazer a atenção para as palavras, frisadas pela interpretação repleta de nuances dadas pela Júlia no vocal. Além disso, convidamos o Camilo Macedo, guitarrista dos Mutantes, para gravar o violão porque sabíamos que ele faria bem essa costura com belas frases, que podem ser apreciadas durante a canção, mas não tiram a atenção da mensagem que está sendo dita.
A parceria com a Garotas Suecas em “Feito Pra Você” é um dos pontos altos do álbum. Como surgiu essa colaboração e o que ela trouxe de novo pro som de vocês?
VE: A colaboração surge em um primeiro momento, a partir da amizade e admiração que temos com o conjunto. Depois de uma conversa dentro do nosso programa de entrevistas “Varal Resenha”, refletimos que a trajetória deles se assemelhava bastante com a nossa em alguns pontos, além da afinidade musical. Com isso, surgiu o convite para a participação em “Feito pra Você” que é um rock brazuca, com influência direta d´Os Mutantes, ponto que temos em comum enquanto referência artística. Ficamos muito felizes com a colaboração em estúdio, com o Rafa Barone estendendo a proposta de liberdade criativa de trabalho com a gente, à eles e o resultado foi perfeito para ser o primeiro single desse novo momento da Varal Estrela, marcando essa ponte entre a antiga cara da banda e o nosso momento presente.
O disco transita entre muitos estilos — samba, soul, funk, jazz, psicodelia — mas ainda assim soa coeso. Como vocês evitaram que essa mistura virasse apenas um mosaico de referências e conseguiram construir uma narrativa sonora com unidade?
VE: A unidade vem muito conectada com a personalidade musical de cada um dos cinco integrantes da banda juntamente com o produtor musical Rafael Barone, que resultam no desenvolvimento e coesão do álbum. É um grande exercício em que todos dançam juntos, mas em alguns momentos um ou outro assume o protagonismo e traz mais forte suas influências e visão, mas o restante continua pulsando junto e abrindo esse espaço. As texturas sonoras também são um grande fio condutor dessa unidade, que apesar de transitar em diferentes universos rítmicos, mantém uma assinatura nas tessituras.
O título do disco é carregado de sentido. O que significa, pra vocês, esse “Auto da Virada”? Tem algo de rito de passagem, de recomeço ou de resistência?
VE: Esse álbum marca em definitivo uma nova fase sonora da banda, mas principalmente enquanto nosso amadurecimento como conjunto. A palavra “Auto”, do latim actu tem o significado de “ação, ato” e nesse trabalho através dessas músicas, deixamos documentado esse momento de virada, de mudança, desse novo movimento e da busca pelo nosso espaço dentro da cena da música brasileira contemporânea. Curioso contar que durante o momento de pré-produção do álbum na chácara, fizemos uma festa de ano novo fora de época de maneira espontânea, movidos por esse sentimento de renovação que estava pairando durante a construção desse álbum.
A produção do Rafael Barone trouxe uma camada nova pro som do Varal Estrela. Como foi trabalhar com ele e que tipo de provocação ou direção ele trouxe pro disco acontecer como aconteceu?
VE: Acreditamos que essa camada nova tem sua base de construção principalmente na já citada e determinante pré-produção do álbum com as provocações feitas pelo Rafael. Nessa fase, levantamos aproximadamente quarenta composições em conjunto e também de maneira individual, além de testar arranjos e nos debruçarmos com afinco na realização de tudo isso, com o objetivo de fazer nosso trabalho de maneira meticulosa. Nosso produtor musical esteve presente em todo o processo, com carinho desde a escolha do estúdio, testando timbres, escolhendo o repertório a ser aprofundado, sempre com o olhar e sensibilidade do que faria mais sentido ser trazido para se tornar o trabalho final enquanto álbum. No geral, ele também nos incentiva a trazer o máximo e o melhor que podemos entregar para o trabalho, ampliando nossa visão e nos fazendo crescer enquanto artistas.

Vocês vêm de Itapeva, interior de São Paulo — um lugar fora do circuito óbvio da música alternativa brasileira. Como isso influencia o som e a postura artística de vocês? Tem algo de “contra a corrente” nessa caminhada?
VE: A banda nasce em Itapeva e quando morávamos lá, estávamos sempre ligados no que estava acontecendo na música independente em outras cidades do interior e também da capital. Isso fez com que a gente fizesse muitas pontes em outros lugares antes da mudança definitiva para São Paulo e aumentasse o desejo de se colocar nesse mercado de maneira mais efetiva. Isso somado com o fato de não ter uma cena aquecida da música autoral em nossa cidade natal enquanto estávamos lá também era algo que nos fazia mobilizar e criar nosso próprio universo. Por exemplo, organizamos o “Toma Roque”, que era um evento que consistia em trazer bandas de outras cidades para tocar em Itapeva, como Charme Chulo, Rafael Castro, WRY e Rock Rocket. A Júlia é a única que não é de Itapeva, ela nasce em São Paulo capital porém, através do teatro, também vem do universo do alternativo, já tendo trabalhado no grupo Os Satyros e tendo o espetáculo “Tatuagem” da Cia da Revista como um dos seus trabalhos mais conhecidos. Com isso, sentimos uma relação de troca muito grande entre nós em entender as diferentes jornadas e acreditando que nos fortalecemos ao trabalhar em grupo.
O álbum é muito dançante, mas também muito lírico. Vocês pensam a música como um espaço pra corpo e alma se encontrarem? Como equilibram esse lado rítmico com o lado mais introspectivo das letras?
VE: Já citamos aqui a pluralidade de referências que cada um dos integrantes traz consigo e disso ser um ponto que acaba desaguando nessa variedade também na nossa música. Enxergar a conexão e não a diferença entre o que a alma quer dizer e o que o corpo quer mover nos deixa livres para transitar, sempre com a coluna vertebral do som sendo o groove. Mesmo para as canções mais densas é preciso haver um balanço, então, ele juntamente com a narrativa do álbum, são os pontos base e a partir deles, podemos brincar entre as diferentes sensações que queremos proporcionar com “O Auto da Virada”.
Por fim: se vocês tivessem que escolher uma imagem, uma cena, um instante pra representar “O Auto da Virada”, qual seria?
VE: A capa do álbum vislumbra bastante o que é “O Auto da Virada” enquanto conceito: Um olho dentro de um sol, um olho emocionado, aberto, atento, radiante, cheio de curvas e texturas. Uma arte feita pelo Guilherme Miranda, artista de Itapeva, escolhido por conta desse olhar comum à nossa história, por estar conectado afetivamente ao nosso momento e trajetória. Essa imagem simboliza nosso interior, tanto pessoal como de localidade, o que sentimos internamente, a vida na cidade de São Paulo, como queremos ser vistos, pelo o que somos, pela diversidade, pelo movimento, pelo acolhimento, por coisas que amamos e por situações não tão agradáveis que nos dão saudade do interior, por nossa existência no presente.