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Carrie & Lowell (10th Anniversary Deluxe Edition): A dor que cura, a memória que canta

Alguns discos não apenas te acompanham em momentos difíceis — eles se tornam parte desses momentos

Carrie & Lowell (10th Anniversary Deluxe Edition)
Foto: Asthmatic Kitty Records/Divulgação

Carrie & Lowell sempre teve esse efeito sobre mim, mas ganhou um novo peso após a morte da minha avó. Ela era mais que uma figura querida; foi, em muitos sentidos, a segunda figura parental que eu nunca tive. Perdê-la foi como perder uma parte da minha identidade, e foi nos versos e acordes de Sufjan Stevens que encontrei espaço para processar esse luto. Quando Sufjan sussurrawe’re all gonna die em Fourth of July, não soa como um presságio, mas como uma aceitação mansa e inevitável. Eu vivo essa música — e não desejo a ninguém ter que vivê-la, mas entendo quem viva.



As memórias despertadas por esse álbum são tão específicas que parecem alinhadas à minha própria biografia. Should Have Known Better me remete às noites em que minha avó preparava meu prato favorito antes de dormir. Eugene me leva de volta aos nossos papos de fim de tarde, quando já adolescente, ouvia ela contar das épocas em que só meu irmão era neto. A faixa-título, por sua vez, embala lembranças das manhãs em que ela me ajudava a me arrumar para a escola, com uma paciência infinita.


Foto: Sufjan Stevens/Reprodução
Foto: Sufjan Stevens/Reprodução

Essa nova edição de Carrie & Lowell, celebrando seus dez anos, não é apenas uma homenagem a um álbum já lendário — é um aprofundamento emocional de uma obra que já era, em essência, um diário aberto. O disco original é um monumento de vulnerabilidade, minimalismo e beleza agridoce. Aqui, o que era íntimo se torna ainda mais cru: as demos adicionadas não diluem o impacto — elas o ampliam. Ao remover os poucos véus de produção, ouvimos a voz de Sufjan como se estivéssemos ao lado dele, em um quarto mal iluminado, cercados por silêncio e memórias. Cada respiração, cada falha de voz, cada corda do violão capturada quase sem polimento — tudo carrega mais verdade, mais peso.



Sufjan sempre foi um artista de dualidades: fé e dúvida, amor e abandono, grandiosidade e sutileza. Mas Carrie & Lowell é onde ele se despede da teatralidade para mergulhar no humano. É, talvez, o disco mais bonito já feito sobre luto, e também um dos mais silenciosamente corajosos. Ele não tenta transformar a dor em espetáculo — ele apenas a expõe, como ela é: esparsa, frágil, às vezes confusa, e muitas vezes silenciosa.


A versão deluxe não recorre a sobras desconexas, como tantos relançamentos comemorativos fazem. Ao contrário: tudo aqui parece ter sido guardado com carinho, esperando o momento certo para emergir. As demos são quase versões definitivas. Em muitos momentos, me pego desejando que fossem as oficiais — tamanha a delicadeza. A ausência de uma demo de "All of Me Wants All of You" é sentida, mas amenizada pela inclusão de "Mystery of Love" em seu formato original, mais íntimo, sem os adornos da versão cinematográfica. A faixa prova, de forma clara, que nunca foi sobre o filme "Call Me By Your Name" — era sobre ele mesmo.


Em termos técnicos, a força do álbum continua sendo sua simplicidade meticulosa. O instrumental é enxuto, mas emocionalmente denso. O violão de Sufjan carrega a melodia como quem carrega lembranças: com cuidado, com dor, com reverência. E a voz — doce, quase frágil — nunca soa tão poderosa quanto quando quase some. É aí que Sufjan transforma o silêncio em poesia.


Fourth of July, agora estendida em um final instrumental de 14 minutos, torna-se a peça central dessa edição. A ambiência etérea que encerra a canção é devastadora e hipnótica, como flutuar entre lembranças de algo que você não consegue mais tocar, mas nunca deixará de sentir. Há algo de celestial ali, como se a própria morte fosse ressignificada em luz e som. É, com justiça, considerada por muitos a melhor música da carreira de Sufjan — e talvez de toda uma década.



Com Sufjan revisitando Carrie & Lowell dez anos depois, percebo que ele continua a crescer comigo. Quando o ouvi pela primeira vez, por volta de 2019, enxerguei nele a dor de alguém que perdeu sua mãe. Hoje, ouço também a minha dor, por ter perdido minha avó. E amanhã, sei que ele vai me dizer algo novo, porque os grandes álbuns fazem isso: eles mudam com a gente.


Este disco não é apenas um tributo à dor de Sufjan Stevens — é um espelho para a nossa. É o som de um coração que se parte aos poucos, e aprende, entre ruínas e silêncio, que o amor e a perda são feitos da mesma matéria. Em tempos em que tantos álbuns tentam ser grandes, Carrie & Lowell continua sendo grandioso justamente por ser pequeno, íntimo e profundamente humano.


E agora, com essa edição estendida, o círculo da intimidade se fecha com ainda mais força. Carrie & Lowell (10th Anniversary Deluxe Edition) não só honra o legado de um clássico moderno — ele o expande, emociona e, de novo, cura.


Obrigado, Sufjan.

Veja o videoclipe de "Mystery of Love"







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